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O ataque de Donald Trump a uma das governadoras do Federal Reserve, o órgão que controla as políticas monetárias da nação, é apenas mais um passo em uma guerra que esta sendo travada sem muito alarde. Lisa Cook, a única mulher negra entre os diretores do Fed e a única que entende economia como uma ciência humana (ela é professora e as pesquisas dela são nesse sentido), passou a ser agredida por Trump que alega que ela teria cometido uma fraude hipotecária e que, por isso, ele a demitiria. Cook respondeu que não sairá da função e que vai processá-lo. Trump não tem esse poder sobre o Fed e está, mais uma vez, cruzando as fronteiras da democracia. Até aí, o jogo dele vem sendo mesmo o de se constituir como um ditador e ele seguirá nesse ritmo até que seja impedido. Trump não quer Cook porque ela compreende economia como ciência humana e acredita que sem justiça social não pode haver desenvolvimento econômico. E Cook é alvo ideal por ser mulher e negra, duas qualidades intoleráveis para o atual presidente. Trump sempre alardeou com orgulho seu imenso desprezo pelo gênero feminino, foi condenado por estupro e acusado de múltiplos outros crimes sexuais. Trump acredita que tem o divino direito de abusar de mulheres, de dizer coisas inconcebíveis à luz do dia e diante das câmeras a respeito de mulheres, e de falar abertamente a respeito da divina superioridade masculina. Bolsonarismo, Trumpismo e outras correntes políticas de extrema direita (e de direita) estão cada vez mais orientadas para a dominação de homens sobre mulheres. Essas ideologias se reproduzem com a ideia de que a família, nos moldes da interpretação que eles alegam fazer da Bíblia, é a base de tudo. Seria aqui preciso entender o que eles compreendem por família: o lugar onde o pai manda, a mãe obedece e trabalha na manutenção do lar e os filhos são criados para serem heterossexuais e repetirem o modelo. A noção de soberania masculina é bandeira dessas ideologias. E com esse masculinismo vem tudo o que ele arrasta: homens preferem conviver com outros homens e querem mulheres caladas e apenas para fins de cuidado e reprodução, a prática da violência é o que legitima a masculinidade, o corpo de uma mulher pertence aos homens, mulheres precisam se submeter ao comando, cuidar dos lares e deixar os espaços públicos (já se fala abertamente nos Estados Unidos a respeito da suspensão do direito ao voto dado a mulheres). Nessas ideologias, o controle sobre a sexualidade e o sistema reprodutivo de uma mulher é central. "Desde os tumultos da revolução sexual e anticolonial do século passado, os patriarcas heterodoxos embarcaram em um projeto de contrarreforma", diz o filósofo Paul Preciado. Eu acrescentaria que o #Metoo acelerou esse circuito. Preciado diz que essa será a "Guerra dos Mil Anos", a mais longa, sabendo-se que afeta políticas e processos reprodutivos através dos quais um corpo humano constitui-se como sujeito soberano: o que está em jogo não é nem o território nem a cidade, mas o corpo, o prazer e a vida. O que está em jogo é a violência como direito da masculinidade. Uma violência que se expressa socialmente como dominação, economicamente como privilégio e sexualmente como agressão e estupro. O que impede que enxerguemos a centralidade das questões de gênero na sustentação do extremismo de direita é o silêncio de uma esquerda que atua para soterrar a agenda feminista, sempre menos importante do que "a economia". O simpático presidente Lula age ofuscado as pautas de gênero, nomeando seguidos homens para cargos de confiança, construindo um STF essencialmente masculino, dando declarações lamentáveis a respeito de papéis conferidos a homens e mulheres, tratando Janja como criança muitas vezes, recusando-se a falar abertamente sobre políticas reprodutivas etc etc etc. Trata-se de um jogo sórdido que finge não saber que economia inclui o trabalho não remunerado das mulheres dentro de um lar (temos até cálculo para isso e ele está na casa do trilhão), políticas reprodutivas e sexuais. A esquerda dá os ombros porque no fundo concorda que a soberania das mulheres está ligada à sua capacidade de gerar. E aqui recorro a Preciado outra vez: "A masculinidade se define pelo direito dos homens de dar a morte, ao passo que a feminilidade se define pela obrigação das mulheres de dar a vida. Pode-se dizer que a heterossexualidade necropolítica é algo como a utopia da erotização do acoplamento entre Robocop e Alien, pensando que, com um pouco de sorte, um dos dois se satisfaça". A imagem perfeita da sociedade que estamos construindo: uma forma de dominação que erotiza a diferença de poder e então a perpetua. Não existe hoje no mundo nada mais identitário do que o Trumpismo. A agenda central é a retomada da dominação masculina, a perpetuação da lógica da violência e a construção de uma sociedade orientada para o desejo do homem heterossexual e para a completa submissão da mulher. Todas as demais pautas associadas a grupos minoritários, como os movimentos negros e as feministas, são universalistas diante desse cenário. Eis o tamanho do enfrentamento que está sendo proposto por Trump e que a esquerda insiste em subverter.