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Não vi as imagens do assassinato de Charlie Kirk. Lembro da sensação de pânico que senti ao saber que ele havia sido executado e li sobre todo o horror das imagens que, segundo relatos, mostram seu pescoço explodindo. Um tiro na jugular. Na garganta. Na voz. E o ativista de extrema direita, que sabia falar com eloquência, ficou em silêncio antes de cair para trás com as mãos na goela e morrer. Eu não concordava com nada do que suas cordas vocais transformava em palavras. Eram coisas abjetas e repugnantes sobre mulheres, pessoas negras, imigrantes, família. Ainda assim, sua morte me chocou. Um mundo que cala nesses termos o oponente é capaz de fazer a mesma coisa com qualquer outra pessoa. Kirk deveria ser ridicularizado se falasse suas atrocidades dentro de uma sociedade decente, mas não assassinado. Só que ele tinha milhões de seguidores, era adorado e aplaudido. O que isso diz sobre os tempos atuais? Kirk é produto de um mundo em derretimento, simbólico e concreto. Rir de sua morte é um sintoma desse derretimento. Eu não quero ser a pessoa que ri da morte de alguém como ele. Mas sei que, se não tomar cuidado, se não for capaz de orar e vigiar, acabarei sendo essa pessoa porque é o que fazemos hoje: troça do radicalmente outro. Ambos os lados dessa batalha acham suas razões para rir. Lembro do que senti vendo a placa com o nome de Marielle Franco ser arrancada e quebrada por extremistas de direita. Um ódio que me dilacerou as vísceras. Lembro das pessoas na porta do hospital fazendo festa enquanto dona Marisa Letícia morria. Lembro do que senti por elas, um tipo de raiva que, se não for domada, pode causar estragos. Eu não quero ser a pessoa que ri da tragédia do radicalmente outro, mas sei que me custa muito esforço não ser. Recentemente, minha participação em uma feira do livro foi cancelada sob a alegação de que minhas opiniões sobre o que constitui uma família seriam muito radicais. Minhas opiniões sobre o que é família pedem que crianças e jovens LGBT+ sejam acolhidos, que o núcleo familiar deixe de ser espaço de hierarquias, que mulheres não tenham que se submeter aos homens, que mulheres não sejam vítimas de tantas violências sexuais, morais, psicológicas e físicas dentro do lar e que não haja papeis fixos de gênero. A ideia vigente de família machuca muitos de nós e precisamos falar sobre isso. O que nessa opinião pode ser ofensivo? Deus, pátria e família é um chamamento historicamente totalitário e recentemente recuperado pela extrema-direita. Fala de um tipo punitivo de Deus, de um tipo eugenista de pátria, de um tipo patriarcal de família. Os extremistas de direita sabem que disputar o conceito de família é central na formação da sociedade hierarquica, branca e masculinista que pretendem construir - e que em muitos termos já existe. Criticar esse Deus, essa pátria e essa família pedindo que disputemos os conceitos para construirmos uma sociedade mais igualitária, justa, amorosa e respeitosa não deveria ofender, apenas instigar diálogos. A verdadeira liberdade passa por enxergar o outro, disse David Foster Wallace. Ela envolve atenção e disciplina para que não nos entreguemos à alegria diante da morte do radicalmente outro. Atenção e disciplina. Orar e vigiar. No fim de um longo e exaustivo dia, é sempre o que de melhor podemos fazer por nós, pelos nossos, pela sociedade que queremos ver nascer.