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O preconceito é um animal interno, traiçoeiro, peçonhento e selvagem. Costuma surgir camuflado, disfarçado. Sempre à espreita, mesmo em pessoas de boa fé, devemos estar sempre atentos para identificá-lo, e condená-lo. No mundo do futebol, é inegável que evoluímos no combate ao preconceito de natureza racial, sexual e de gênero. Com punições concretas e algumas ações afirmativas, embora ainda longe de ser expurgados, já não se aceita mais o seu exercício expresso, a sua manifestação externa. Mas um tipo sobrevive, incólume. Continua grassando livremente entre torcedores, dirigentes e até mesmo alguns setores da comunicação. Muitos nem se dão conta. Outros lhe são indiferentes. Poucos se comovem. Trata-se do preconceito regional. Na semana que passou, ele ficou escancarado, ainda mais desavergonhado. Um dirigente do Corinthians afirmou que o Bahia "não era ninguém" antes de constituir a sua SAF com o Grupo City. Alguns comunicadores corroboraram essa "análise". Houve um comentador de TV que chegou a afirmar, em tom eloquente, que o Bahia "vendeu a alma" ao Grupo City para ser alguém no cenário nacional. Um Bicampeão brasileiro! Ora, num passado não muito longínquo, pré-SAFs, clubes grandes do Brasil receberam investimentos externos. O próprio Corinthians vendeu o controle de seu departamento de futebol para o fundo norte-americano Hicks Muse, em troca de recursos externos. O Palmeiras viveu, por quase uma década, uma co-gestão com uma multinacional europeia. Tantos outros receberam recursos de fora. As SAFs de Vasco e Botafogo foram adiquiridas por investidores dos EUA. Em nenhum desses casos se viu dirigentes adversários enfurecidos ou comunicadores indignados, vociferando contra quem teria vendido a sua alma por dinheiro em troca de um lugar que não os pertenceria. Assim como diversos brasileiros de classe média e alta não tiveram vergonha em manifestar o seu incômodo em compartilhar os bancos dos aeroportos com "pobres" que começaram a ter acesso às viagens de avião, desconforto semelhante parecem sentir com a ascensão de intrusos ao seleto clubinho milionário da bola. Travestem seus preconceitos regionais flagrantes com uma suposta pureza ou sentimento de injustiça, como se houvesse uma legitimidade orgânica a proteger os grandes ao Sul. Supremacistas clubísticos, tal qual os raciais, crêem num lugar natural e inamovível para clubes de mídia nacional, rechaçando eventuais "penetras" sob argumentos puristas. Nos estádios, com gestos e palavras, chamam os nordestinos de "paraíbas", "índios", "cabeças-chata" e tantos outros impropérios. Não há regras ou normas a condená-los. Soam até engraçadinhos. Tolerados, foram normalizados nos estádios sudestinos e sulistas. O preconceito regional parece ter virado o porto seguro dos intolerantes. Até quando? *