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A multipropriedade de clubes - ou - não é novidade no futebol. Em evento que participei sobre direito e esporte do Lei em Campo e da Verbo, foi lembrado de um caso dos anos 90 envolvendo o pentacampeão Cafu que chamou atenção no Brasil: ele chegou do futebol europeu após passar pelo Parma, mas, no caminho, viveu uma operação de "transferência-ponte" envolvendo Palmeiras e Juventude. A transação, formalmente válida, serviu como artifício para viabilizar o destino final do jogador. Já naquela época, ficava claro o perigo de brechas regulatórias para a integridade do esporte. O episódio foi emblemático porque o contrato de Cafu com o Parma continha uma cláusula que proibia sua ida direta para o Palmeiras, em razão da rivalidade local e dos riscos de conflito. A Parmalat, que exercia forte influência nos três clubes (Parma, Palmeiras e Juventude), encontrou uma forma de burlar a restrição: transferiu o jogador primeiro ao Juventude, e só depois ele chegou ao Palmeiras. O mecanismo jurídico funcionou, mas expôs como a concentração de poder empresarial em múltiplos clubes pode corroer a lógica do fair play e abrir espaço para arranjos artificiais. Hoje, com a consolidação da Sociedade Anônima do Futebol (Lei 14.193/2021) e a entrada de grupos internacionais no Brasil - como o City Football Group no Bahia e a 777 Partners no Vasco, como exemplos - o tema ganhou ainda mais urgência. Multipropriedade significa que uma mesma pessoa física ou jurídica controla dois ou mais clubes, direta ou indiretamente. Isso gera conflitos de interesse que não podem ser tratados apenas com a regra simples de impedir o encontro de clubes do mesmo dono em um campeonato. O risco é maior. Como bem destaca a literatura jurídica, a integridade do jogo não se resume a evitar manipulação de resultados. É preciso assegurar ao torcedor que não haverá favorecimentos administrativos, econômicos ou políticos entre clubes de um mesmo conglomerado. Um grupo pode, por exemplo, driblar sanções, utilizar transferências-ponte ou empréstimos em excesso para reservar atletas no mercado - práticas que corroem a confiança no futebol. Como lembra , em coluna publicada no , a multipropriedade precisa ser observada sob uma perspectiva global: conglomerados internacionais estão se expandindo para mercados emergentes e testando os limites da regulação. No Brasil, ainda que a Lei da SAF estabeleça restrições, estruturas societárias sofisticadas podem burlar a norma. O risco maior não é apenas jurídico, mas de confiança: "o torcedor precisa ter certeza de que o seu clube não será moeda de troca em um tabuleiro global de negócios". A UEFA já enfrentou dilemas semelhantes, como no caso Red Bull Leipzig e Red Bull Salzburg em 2017, e a própria FIFA, em seu Regulamento de Transferências, precisou limitar empréstimos justamente para frear abusos de conglomerados. No Brasil, a Lei da SAF trouxe vedações para impedir que um mesmo controlador detenha participação em duas SAFs. Mas a lei, sozinha, não basta: o desafio é permanente. Por isso, mais do que normas estatais, o futebol precisa avançar em . Ligas e federações devem criar barreiras adicionais para evitar distorções competitivas e reforçar a transparência. Proteger a integridade esportiva é proteger o próprio valor do futebol: sua imprevisibilidade, seu caráter meritocrático e sua credibilidade diante da sociedade. E aqui ficam algumas questões que precisam ser feitas: - Como garantir que clubes de um mesmo dono não troquem jogadores de forma a contornar sanções ou criar reservas de mercado? - Que mecanismos de fiscalização existem para assegurar que não haverá alinhamento de resultados em competições distintas, mas interligadas? - O torcedor pode confiar que, diante de um confronto indireto de interesses, seu clube será sempre prioridade? - Até onde a liberdade de mercado pode se sobrepor à integridade esportiva? O caso Cafu nos lembra que o problema não é novo. A diferença é que, agora, os conglomerados chegam ao Brasil com muito mais recursos e poder de influência. Se o esporte não reagir com firmeza, o risco de desequilíbrio competitivo e perda de confiança será ainda maior. .