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O futebol conta muitas histórias de lugares pequenos, porque o futebol vem dos lugares pequenos, nas margens encantadas do mundo. Um grande jogo no Santiago Bernabéu é também jogado por pés que frequentaram "peladas" em campinhos de terra batida, várzeas de rios, orlas de praias, ruas sem saída e vielas mal asfaltadas. Um desses lugares pequenos do mundo do futebol é o arquipélago de Cabo Verde, um país insular há aproximadamente 600 km da costa ocidental da África, com fortes conexões culturais e históricas com o Brasil que vão muito além de termos o português como língua oficial e de Portugal como colonizador. Cabo Verde foi uma parada obrigatória para um grande número de pessoas africanas que vieram escravizadas para o Brasil. O milho vindo do Brasil, em contrapartida, tornou-se um grão essencial da comida e da cultura cabo-verdiana. Aqui na Ilha de Santiago, basta afastar-se um pouco da capital, Praia, para encontrar crianças e adultos jogando bola nos campos agrícolas que ficam ociosos durante a longa estiagem do país entre os meses de fevereiro e julho. Lendo um artigo do sociólogo cabo-verdiano Vladmir Ferreira descobri que, em referência ao período da seca e muito provavelmente à famosa "pelada" brasileira, o jogo é chamado de "seca peli". Do fim de julho a outubro, explica Ferreira, os jogos tem que parar pois é tempo da "azágua", a estação chuvosa. As famílias rurais aguardam ansiosas pela chuva e chamam vizinhos, amigos e parentes que vivem longe para "juntar mãos" e semear o milho e o feijão, que nascem enrolados um ao outro e serão colhidos de novembro a janeiro. Na "azágua" deste ano, enquanto os campinhos de futebol estão interditados pelos pés-de-milho que quase alcançam o travessão dos gols (veja foto), tem algo que os cabo-verdianos anseiam mais que a chuva - que esse ano chegou violenta e castigou outra ilha do arquipélago, São Vicente. Cabo Verde está completamente parado para assistir a seleção nacional fazer história e, no ano da celebração dos 50 anos de independência, ter a chance de levar o país para sua primeira Copa do Mundo. Amílcar Cabral, herói da libertação de Cabo Verde e Guiné Bissau, foi um jogador de futebol amador na juventude e provavelmente estaria emocionado de ver seu país liderar o grupo D das eliminatórias africanas para a Copa do Mundo de 2026. No último dia 9 de setembro, os "tubarões azuis", como são afetivamente chamados pelos torcedores, venceram por 1 a 0 o confronto direto com o principal oponente do grupo, os Camarões, com direito a um golaço do jovem Dailon Livramento. A torcida em êxtase invadiu o Estádio Nacional após o apito final, numa cena que, mesmo punida pela FIFA, ficará na história e faria os brasileiros mais velhos lembrarem da final da Copa de 70. Como muitos atletas e artistas, Dailon é um filho da diáspora cabo-verdiana. Nasceu em Roterdão, na Holanda, uma das grandes comunidades históricas fora do país, como a de Massachusetts e Rhode Island, nos Estados Unidos, que agora está enlouquecida com a possibilidade de ver a seleção cabo-verdiana atuar na copa sediada por lá no ano que vem. Na contramão das seleções europeias que naturalizam muitos filhos de imigrantes como Dailon, Cabo Verde conta com seus "filhos da diáspora", que mantêm laços profundos com o país por meio da música e da língua crioula — imortalizadas na "sodade" cantada por Cesária Évora —, pelo sabor da "catchupa", prato típico feito de milho e feijão que reúne famílias em torno da mesa, e, hoje, também pelo futebol. Nenhum atleta da seleção cabo-verdiana atua em um grande time do futebol mundial. Dailon atua no modesto Casa Pia de Lisboa, que atualmente ocupa a parte de baixo da tabela da primeira liga portuguesa. Certamente os cabo-verdianos amariam vê-lo jogar em um dos três principais clubes portugueses pelos quais torcem: Benfica, Sporting e Porto. A camisa da seleção portuguesa, no entanto, quase não se vê por aqui: mesmo em má fase, é a amarelinha da seleção brasileira a segunda camisa de seleção mais querida dos cabo-verdianos. Além delas, as camisas de Flamengo, Palmeiras, Corinthians e, depois do retorno de Neymar, do Santos, circulam bastante em Cabo Verde, assim como a dos craques brasileiros na Europa como Raphinha e Vini Jr. Os brasileiros que passam por aqui se surpreendem com o acolhimento que são tratados, com a música brasileira que toca em todo canto e com a "fluência" dos cabo-verdianos em falar sobre o Brasil. Muitos cabo-verdianos já foram para lá trabalhar ou estudar, e outros tantos cresceram assistindo os canais de tv e, hoje em dia, as redes sociais brasileiras. Com toda a distorção que a lente das telas e telinhas possa oferecer, os cabo-verdianos conhecem muito mais de nós, do que nós os conhecemos. Amanhã, dia 08 de outubro, às dez horas da manhã horário de Brasília, poucos brasileiros estão sabendo que nosso irmãos atlânticos jogarão contra a Líbia, em Tripoli, pela maior glória futebolística da sua história. Com uma vitória, ou em caso de que Camarões não ganhe no mesmo horário contra as Ilhas Maurício, o país estará na sua primeira Copa do Mundo. Ainda terá, no dia 13 de outubro, em casa, contra Essuatíni, a segunda chance para se classificar e celebrar junto a sua torcida no Estádio Nacional da Praia. Nos campinhos de milho, feijão e futebol do arquipélago e espalhados pelos campinhos do mundo, cabo-verdianos estarão mais perto do que nunca uns dos outros, unidos pelo sonho de ter seu país entre as grandes seleções do mundo em 2026.