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Adversário do Flamengo nas quartas de final da Copa Libertadores, o Estudiantes tenta se tornar a exceção no futebol argentino ao buscar a transformação em empresa. A iniciativa contraria a regra estabelecida pela Associação do Futebol Argentino, que ainda proíbe a criação das Sociedades Anônimas Desportivas no país, ou as famosas Sociedades Anônimas do Futebol, as SAFs, no Brasil. A condução desse processo está nas mãos de Juan Sebastián Verón, ídolo histórico e atual presidente do clube, que no fim de 2024 firmou um pré-acordo com o magnata Foster Gillett, filho de George Gillett, ex-dono do Liverpool. O projeto prevê um aporte inicial de 200 milhões de dólares caso a negociação seja concretizada. O movimento liderado pelo Estudiantes acontece em meio a uma intensa disputa política na Argentina. A transformação dos clubes em empresas é uma das bandeiras do presidente Javier Milei desde sua candidatura, mas encontra forte resistência de Claudio Tapia, presidente da AFA. Em julho de 2024, o governo autorizou a entrada de capital privado no futebol argentino a partir de novembro, mas as ações judiciais articuladas por Tapia, com apoio de clubes tradicionais como o Boca Juniors, vêm barrando a mudança. A divergência entre as duas lideranças ganhou novos capítulos em 2025, quando Milei usou as redes sociais para atacar o modelo defendido pela federação após a eliminação precoce de Boca e River na Copa do Mundo de Clubes da FIFA. "Nem River, nem Boca. Sem argentinos no Mundial de Clubes. O Brasil foi com quatro times, os quatro passaram. Até quando teremos que apontar o fracasso do modelo Chiqui Tapia? Um campeonato frágil, com 30 times, sem competitividade, sem SAD, sem incentivos. Não está à altura do tremendo público argentino que lota estádios ao redor do mundo. Insisto, Chiqui Tapia e seu minúsculo círculo fazem mal ao futebol argentino", escreveu o presidente. A agenda de Milei para transformar o futebol argentino foi clara desde o início de sua gestão. Em março de 2024, ainda nos primeiros meses de mandato, ele discursou na feira agroindustrial Expoagro e afirmou que o Grupo City tinha interesse em investir em grandes clubes do país. "É um investimento monumental. Ou preferem continuar nessa miséria, onde cada vez mais temos um futebol de pior qualidade?", provocou. No fim do ano passado, o presidente também revogou um decreto que concedia benefícios fiscais aos clubes, reforçando sua intenção de abrir espaço para as sociedades anônimas. Especialistas acreditam que, caso a Argentina adote esse modelo, o impacto poderá ser ainda mais profundo do que o registrado no Brasil. Thiago Freitas, COO da Roc Nation Sports no Brasil, avalia que a abertura aceleraria transformações estruturais no futebol argentino. "O equilíbrio no âmbito técnico e esportivo demandaria alguns anos, e não seria atingido ainda nessa década. Na próxima, certamente. De imediato, teríamos uma significativa redução de interesse dos investidores qualificados, europeus e norte-americanos na aquisição das ações dos clubes brasileiros, com a concorrência dos argentinos por seus recursos. Ainda que o futebol no país vizinho tenha abdicado do calendário alinhado com o europeu e tenha inflado sua primeira divisão, já vivenciaram um cenário ideal, o que nunca tivemos, por conta da forma como nossas federações estaduais capturam datas e dinheiro dos nossos principais clubes", explicou. Freitas destaca ainda outros pontos que poderiam colocar os argentinos em vantagem na corrida por investidores. "Questões como logística, instrução média de atletas e treinadores, a distribuição dos clubes e o número de efetivos torcedores, e não apenas simpatizantes, muito maior do que temos no Brasil, fazem com que clubes argentinos sejam mais atrativos sob diferentes aspectos. Por fim, e não menos importante, pesaria também a favor dos argentinos a percepção internacional de enorme insegurança jurídica do ambiente de negócios brasileiro, potencializada nesse caso específico pelo que se passou com o Vasco", acrescentou. Na avaliação de Cristiano Caús, sócio fundador responsável pela área de Direito Desportivo na CCLA Advogados, a abertura para esse modelo de gestão é um caminho inevitável. "Em teoria, o presidente da Argentina está correto. Os clubes deveriam ter ao menos o poder de optar por um modelo associativo ou não, como ocorre no Brasil. Em outros países, como Portugal e Espanha, para os clubes sem liquidez, a lei foi ainda mais incisiva e obrigou a transformação. A gestão de um clube de futebol por uma empresa permite a atração de mais e maiores investimentos, na medida em que o investidor se torna dono do clube ou de parte do capital acionário e, com isso, a governança passa a ser levada a sério, com profissionalismo no lugar da política, com longo prazo no lugar de curtos mandatos sem responsabilidade e permeados por decisões com fins eleitoreiros", avaliou. O presidente da P&P Sport Management Brasil, Claudio Fiorito, segue a mesma linha e reforça que a transformação em empresas representa uma tendência irreversível no futebol global. "As transformações dos clubes em SAF em todo o mundo, e o Brasil é uma prova recente disso, retratam que é um caminho sem volta de investimentos dentro e fora dos campos e um sinal de esperança não apenas para os chamados grandes, mas também para os menores, que passam a contar com novas receitas para incrementarem seus elencos e estruturas. É preciso, no entanto, boa gestão. Alguns clubes sul-americanos têm seguido esse caminho, mas é uma minoria. A partir do instante em que isso se tornar uma realidade, principalmente aos argentinos, creio que o nível de competitividade terá um efeito maior de equilíbrio", disse. Com Verón à frente de um projeto ousado e Milei disposto a confrontar a AFA, o Estudiantes se coloca no centro de uma discussão que pode remodelar os rumos do futebol argentino. O clube que enfrenta o Flamengo nesta quinta-feira não joga apenas por uma vaga na semifinal da Libertadores, mas também pelo simbolismo de tentar se tornar pioneiro em um modelo de gestão que divide o país.