Conteúdo Original
23 de setembro é uma data marcante para o futebol brasileiro. Há exatos 20 anos, a revista Veja publicou uma reportagem do jornalista André Rizek expondo o que seria um dos maiores escândalos da história do esporte mais popular do País: a chamada Máfia do Apito. Árbitros manipulavam resultados do Campeonato Brasileiro a serviço de quadrilhas de apostadores. O principal personagem foi o árbitro Edílson Pereira de Carvalho, do quadro da Fifa. Investigadores descobriram que ele, em conluio com apostadores, recebia dinheiro para manipular partidas do Campeonato Brasileiro de 2005. Após a reportagem, Edílson Pereira e o empresário Nagib Fayad, conhecido como "Gibão", foram presos. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) anulou os 11 jogos apitados pelo árbitro e determinou sua realização novamente. A remarcação das partidas alterou o rumo da competição nacional. O Corinthians terminou campeão com três pontos a mais que o Internacional. Se os resultados originais tivessem sido mantidos, o título teria ficado com o clube gaúcho. O episódio não apenas mudou o desfecho do campeonato daquele ano, como também alterou a legislação brasileira e marcou para sempre a relação entre esporte, sociedade, justiça e integridade. "Nas últimas décadas, o futebol passou por diversas intervenções legislativas. Em 2003, entrou em vigor o Estatuto do Torcedor (Lei nº 10.671), que disciplina as relações entre torcedores e entidades esportivas. Já em 2005, com o escândalo da Máfia do Apito, a legislação foi alterada para prever punição criminal para quem se envolvesse nesse tipo de esquema", explica Carlos Ramalho, advogado especializado em direito desportivo. "De lá para cá, houve avanços importantes no contexto legislativo, visando coibir fraudes e estabelecer estruturas de governança para as entidades esportivas. Um exemplo foi a aprovação da Lei do PROFUT (Lei nº 13.135/2015), que estabelece princípios de responsabilidade fiscal e de gestão transparente para clubes de futebol. Mais recentemente, vieram a Lei da SAF (Lei nº 14.193/2021) e a Nova Lei Geral do Esporte (Lei nº 14.597/2023), incluindo novos mecanismos de controle e gestão", acrescenta o especialista. Paulo Marcos Schmitt, então procurador-geral do STJD, conta que a decisão de anular e repetir 11 jogos foi dura, mas necessária: "Tivemos que agir com coragem diante de uma situação inédita. A manipulação de resultados por um árbitro colocava em risco toda a credibilidade do Campeonato Brasileiro. A medida, embora polêmica, era a única capaz de preservar minimamente a isonomia entre os clubes", afirma. Fora de campo, o processo penal contra os envolvidos não avançou. O motivo: falta de legislação. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) entendeu que não havia crime tipificado. A partir daí, vieram as mudanças. "Esse choque de realidade impulsionou reformas, desde a modernização do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) até a criminalização das fraudes esportivas. Passadas duas décadas, os efeitos ainda se fazem sentir. Hoje falamos de integridade como eixo estruturante do esporte brasileiro, e isso tem origem direta naquela crise de 2005", completa Schmitt. "E a lição permanece viva: sem integridade não existe esporte. A Máfia do Apito mostrou que o futebol só sobrevive se a sociedade confiar no resultado de campo. Se em 2005 mostramos que era possível reagir, hoje precisamos mostrar que é possível prevenir. Esse é o verdadeiro legado", acrescenta. Em 2010, cinco anos após o escândalo, o Estatuto do Torcedor foi alterado para incluir o artigo 41-C, que tipifica a manipulação de resultados como crime, com pena de 2 a 6 anos de reclusão e multa. O caso também gerou debate no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 2021, a 3ª Turma analisou ação coletiva que buscava indenização de torcedores contra CBF e FPF. O relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, entendeu que não houve dano moral coletivo. Já a ministra Nancy Andrighi divergiu, destacando que a manipulação atingiu valores sociais essenciais e a confiança dos torcedores. Seu voto vencido permanece como referência sobre o impacto cultural e social do futebol no Brasil. "Não há dúvidas de que a legislação relativa ao futebol vem evoluindo em consonância com sua importância e desafios contemporâneos. E não poderia ser diferente, diante da relevância social e econômica do esporte no Brasil", avalia Carlos Ramalho. Vinte anos depois, a produtora Feel The Match, em parceria com o SporTV, lançou uma série especial de três capítulos sobre a Máfia do Apito. O documentário traz bastidores e conta detalhes do escândalo. Em entrevista exclusiva ao , Bruno Maia, produtor da série e CEO da Feel The Match, falou sobre os bastidores da produção. Grandes histórias merecem ser contadas da melhor forma possível. Sabemos que é um dos maiores, se não o maior, escândalo do futebol brasileiro, mas, antes de tudo, é uma grande narrativa. O documentário não foi feito só para quem gosta de futebol nem apenas como registro jurídico. Ele é um produto de entretenimento, pensado para prender a atenção do público. O desafio foi dar ritmo e linguagem de filme de ação a uma história sem tantas imagens disponíveis. Trabalhamos muito para transformar algo que poderia ser apenas um podcast em um grande filme - e conseguimos. O maior desafio no Brasil é conseguir financiamento. Muitas vezes se imagina que os produtores ficam ricos com projetos caros, mas não é assim. É uma produção cara, e tivemos dificuldades para levantar os recursos necessários. Queríamos tratar esse caso com a atenção e o esmero que merece, não apenas pela importância histórica, mas também pela força da narrativa. A história desses personagens - árbitros, apostadores, jornalistas, membros do Ministério Público - é inacreditável. Documentar tudo isso de forma envolvente deu bastante trabalho. A produção durou cerca de 13 meses. A primeira etapa foi de intensa pesquisa: entrevistamos muitas pessoas para entender que história queríamos contar. Conversamos com mais personagens do que aqueles que aparecem na série. Aos poucos, fomos recortando o material. Tivemos como referência inicial uma entrevista feita pela Join Comunicação, nossa co-produtora, com Edílson Pereira. Mas a série não é sobre ele; é sobre o futebol brasileiro, com Edílson como um dos protagonistas. Boa parte do trabalho foi encontrar personagens pouco conhecidos e mostrar como suas trajetórias revelavam diferentes visões éticas. Cada espectador vai sentir de forma diferente. Mas acredito que a principal mensagem é a necessidade de vigilância. A fraude evolui junto com a tecnologia, e as leis normalmente vêm depois, para coibir práticas ilícitas. Hoje temos um arcabouço legal que não existia em 2005. Escândalos recentes mostram menos árbitros envolvidos, mas mais jogadores. Defendo que as apostas esportivas sejam reguladas, não proibidas. O essencial é que as plataformas colaborem com investigações e assumam responsabilidade para manter o jogo limpo. .