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No palco do Teatro Chatelet, em Paris, Ousmane Dembelé falava com a voz trêmula. Nervoso, o atacante francês de 28 anos anos soltava frases curtas e sinceras. "Meu objetivo nunca foi ganhar a Bola de Ouro" disse, segundos depois de ser anunciado por Ronaldinho como o vencedor. No momento de maior protagonismo individual da carreira, Dembelé era a imagem do desconforto: segurava com a mão direita um dos microfones do púlpito, como se precisasse se agarrar a algo para não derreter diante dos olhares do mundo inteiro. A mão esquerda, dentro do bolso da calça, não ousava tocar o troféu de 12 quilos que repousava a poucos centímetros do jogador. Naquele momento, Dembelé já era o melhor jogador do mundo na temporada 2024-25, eleito por jornalistas de uma centena de países. Mas ele mesmo parecia não acreditar. Com um fiapo de voz, lembrou da mãe — que foi chamada a subir ao palco —, chorou ao falar do empresário e dos amigos de infância. As cenas são incomuns nesse tipo de prêmio, que costumam cair nas mãos de superestrelas, de gente mais acostumada a ter o mundo todo olhando para si. É incomum, também, a trajetória que levou Dembelé ao topo do futebol mundial. Aos 18 anos, ele surgiu como um furacão no Stade Rennais, da França. Rápido, habilidoso, ambidestro, atrevido... E tímido. Depois de ser cortejado por clubes da Inglaterra e pelo Barcelona, acabou indo parar no Borussia Dortmund, da Alemanha, um dos times que melhor sabe desenvolver jovens talentos no mundo. Uma temporada na Bundesliga foi o bastante para comprovar que o fenômeno era real — e para catapultar o valor de mercado do francês. O Dortmund, que pagou 15 milhões de euros por ele em 2016, vendeu por 105 milhões ao Barcelona 12 meses depois. Um lucro de 90 milhões de euros; ou R$ 566 milhões, em valores atuais. Dembelé chegou ao Barcelona para substituir Neymar. Era um dos jogadores mais promissores do mundo, comparado a brasileiros como o próprio Neymar e a Ronaldinho Gaúcho, e considerado o melhor ponta francês desde Thierry Henry. A pressão de chegar à Catalunha para se transformar em uma superestrela, aos 20 anos, jogou a vida de Dembelé em uma espiral descendente. O nervosismo atrapalhava em campo, a timidez não ajudava a criar laços num vestiário complexo, a falta de conhecimento nos idiomas espanhol e catalão isolavam ainda mais o jovem prodígio. Aí, o garoto que teria de conquistar o mundo passou a mal sair de casa. Diretores do Barcelona nos tempos de Dembelé relataram ao que eram comuns as noites em claro jogando videogame e comendo fast food. As poucas horas de sono e a alimentação desregrada não ajudavam na recuperação de lesões — e foram muitas. Quando saiu do Barcelona em 2023, aos 26 anos, Dembelé já era um vencedor de Copa do Mundo (ganhou com a França em 2018, sendo reserva na fase final), mas carregava uma imagem de talento desperdiçado. Era um "ex-futuro melhor do mundo". Um manancial de habilidade e técnica que não conseguia transformar o potencial em resultados. A transferência pro PSG era vista como um movimento crucial para tentar reconduzir a carreira. Há uma série de fatos que se combinam para reformular a vida e a obra de Dembelé; alguns deles, como o casamento e a paternidade, aconteceram ainda em Barcelona. "Ele mudou muito a partir dali", disse ao uma pessoa próxima ao jogador. Faltava a metamorfose dentro de campo. Em Paris, o caminho do atacante cruzou-se com o Luis Enrique, treinador que hoje o francês diz ser "como um pai" para ele. Na primeira temporada, em 2023-24, Dembelé aprendeu a se esforçar pelo grupo: passou a marcar mais, a correr para a estrela da companhia — Kylian Mbappé — pudesse brilhar. Com a saída do astro para o Real Madrid, a carreira de Ousmane chegou a uma encruzilhada: ele precisaria ser protagonista. "Você precisa acreditar que pode ganhar a Bola de Ouro", ouviu de um membro da comissão técnica, em uma reunião no início da temporada 2024-25. Luis Enrique precisava despertar um animal competitivo num jogador tímido, que não estava acostumado a ser protagonista, e passara os últimos anos escondido atrás de estrelas que tinham a responsabilidade de decidir os jogos. À base de muita insistência e de algumas rusgas (como a não convocação para o jogo contra o Arsenal pela Champions League), Luis Enrique mudou Dembelé. Transformou o atacante com perfil de gênio preguiçoso em um dos melhores marcadores de saída de bola do mundo. Na final que consagrou o PSG, em Munique, uma imagem impressionou tanto quanto a goleada por 5 a 0 sobre a Internazionale: o olhar de predador de Dembelé esperando que o goleiro Yann Sommer tocasse na bola em um tiro de meta, para começar a pressionar os zagueiros. Foi ali que Luis Enrique viu que ele havia entendido o recado. Os 35 gols e 15 assistências da temporada foram fundamentais, é claro. Mas a Bola de Ouro não veio por causa dos números. Ela só foi possível porque o outrora prodígio entendeu que só a genialidade não o levaria ao topo. Dembelé pode até dizer que nunca esperou ganhar uma Bola de Ouro. Mas, pela forma como reconduziu a carreira, soube lidar com as decepções e liderar um time histórico, ele mereceu o prêmio.