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A cena é conhecida: pênalti, estádio em ebulição, cronômetro cruel. Para quase todo mundo, é a loteria. Para Hugo Souza, é ciência com fé: estudo de gesto, leitura de corpo e um pacto íntimo com quem já não está mais aqui. "Eu jogo futebol pelo sonho do meu pai, muito mais pelo dele do que pelo meu", me disse. É daí que nasce o novo Hugo: mais profissional, mais sereno, mais pronto para decidir. No Corinthians, a virada começou antes mesmo do primeiro jogo. "No meu primeiro dia na Neo Química Arena, a gente toma um gol e a torcida canta mais alto. Ali eu falei: 'Caramba, a parada aqui é diferente'." O impacto virou pertencimento quando a bola rolou: atuação de melhor em campo, vitória e a certeza de que a arquibancada não desiste nos 90 minutos. "Se tiver que cobrar, cobra depois. Durante o jogo, apoia." A trajetória de Hugo é menos linha reta e mais eletrocardiograma. Filho de Duque de Caxias, começou no futsal, encarou três ônibus para treinar, dividiu o pouco que tinha com a família, e quase ficou pelo caminho quando o dinheiro das passagens acabou. O Flamengo o resgatou ainda menino. Em 2020, quando virou profissional, já não tinha o pai ao lado. "Ele era minha base. Quando as coisas começaram a acontecer, eu não consegui me segurar." O tropeço virou aprendizado. A temporada no Chaves, em Portugal, trouxe um aperto de mãos com a própria cabeça: "Eu precisei cuidar da mente. Mudei rotina, sono, alimentação, tudo." O resto você lembra: a chegada ao Corinthians no olho do furacão, a frase de apresentação: "É no caos que os bons aparecem", e o Paulistão da redenção, com defesa em cobrança de Raphael Veiga na final. "Foi a melhor defesa da minha vida. O Estevão batia sempre ali, o Veiga variava mais. Estudo, detalhe e decisão." O gesto que vale taça virou carimbo de identidade: Hugo, herói com H maiúsculo, como cantou a Fiel. A seleção entra como consequência, não como atalho. Hugo sentiu o coração acelerar ao ver a pré-lista e entendeu o recado de Ancelotti: mais do que ir uma vez, é ganhar sequência. Ele sabe onde a chavinha virou: fim de 2024 para início de 2025, quando manteve, ou elevou, o nível do ótimo segundo semestre com a camisa do Corinthians. "Ali eu falei: agora tô no jogo." Está, e por mérito. Há humanidade nas entrelinhas. O noivado, o luto silencioso de uma gestação de gêmeos que não foi adiante, a irmã cantora com quem ele fazia louvor na igreja, a casa que se equilibrou entre a dor e a bola. "Tive que separar o Hugo profissional do Hugo pessoa", admite. Nem sempre dá, E tudo bem dizer isso em voz alta. Talvez por isso ele cite, com naturalidade, suas referências: Dida, Júlio César e Buffon na formação; Alisson, Courtois e Oblak na prateleira atual. É sobre técnica e sobre exemplo. Na brincadeira final, seu "time dos sonhos" mistura coração e gramado: Mateuzinho, Marquinhos, Léo Pereira e Filipe Luís; Casemiro e Gerson; Arrascaeta e Neymar; e na nove, a disputa sincera entre Yuri e Gabigol. O técnico? "Ancelotti." Democrático, como quem aprendeu a ganhar escutando. Hugo fala de pênaltis como quem lê um livro que já conhece o final, mas respeita cada página. Em tempo normal, diz ele, é mais difícil: uma chance só, "ali ou ali". E quando eu pergunto o que diria ao pai se pudesse abraçá-lo hoje, o goleiro desarma qualquer armadura: "Eu só abraçaria e diria: a gente conseguiu. Valeu a pena." Futebol também é isso, um filho levando um sonho até o fim do mundo, para devolvê-lo em forma de defesa no ângulo. Hugo Souza não nasceu pronto; ficou pronto. No Brasil que costuma queimar etapas e arquivar talentos, ele é a lembrança de que processo importa. E quando a pressão aperta, como em pênaltis, clássico, disputa de título, o goleiro que virou a chave no caos escolhe a mesma resposta: estudo, calma e coragem. O resto, a Fiel canta mais alto. E a vida, como ele diz, recompensa.