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A altitude é de verdade. Óbvio que já era, porque eu não brigo com a ciência. Mas pela primeira vez ela virou de verdade para mim. Com quase tudo o que tem direito para quem mora ao nível do mar e estreou nos 4.100 metros de El Alto. O me mandou para a Bolívia cobrir o último jogo do Brasil nas Eliminatórias, depois de uma semana acompanhando Carlo Ancelotti e seus convocados "em casa", alternando entre Granja Comary e Maracanã. Não me pergunte como foi o segundo tempo do jogo. Mas posso dar detalhes da ambulância na qual passei praticamente a segunda parte toda da vitória que levou a Bolívia para a repescagem da Copa. Este texto é um pedido de desculpas a jogadores que já critiquei (ainda que mentalmente) por atuações pífias no alto do morro. Também é uma admissão: entrei para o time dos condescendentes com derrotas lá em cima. Eu estava muito curioso para ver como meu corpo reagiria à estadia em La Paz (que tem 3.600 m de altitude) e, sobretudo, aos momentos em El Alto, 500 metros mais alto. Contrariando recomendações de amigos que já tinham pisado por lá, até mesmo para turismo radical, eu queria testar como seria sem recorrer ao famoso chá de coca. E olha que Antônio Carlos Zago, técnico brasileiro que treinou a seleção da Bolívia e times bolivianos nos últimos anos, já tinha me dito que era uma boa tomar uns quatro, cinco por dia. Marcelo Moreno, com quem encontrei na conexão em Guarulhos, foi outro que me deu um toque. Se ele, o maior artilheiro da seleção boliviana, sentia os efeitos da altitude, quanto mais eu. Mas eu não sou teimoso, não. Queria ir sem cair no exame antidoping. El Alto já te dá um susto quando você desce do avião. A mudança da pressurização da cabine para os 4.100m do aeroporto que fica no caminho entre o estádio do jogo e La Paz, onde eu iria me hospedar, já dá um "hola, que tal?". Fiquei meio tonto, com uns calafrios diferentes. Não era por hipoglicemia (eu sou diabético). Já logo desacelerei um pouco. A mala que eu tinha que buscar na esteira não fugiria para lugar algum. Mas tirando esse baque inicial, eu estava de boa. Talvez fosse a sensação que os jogadores que saem de Santa Cruz de La Sierra sentem nos primeiros instantes lá em cima. Devidamente instalado no hotel (um frio desgraçado na cidade), saí para achar algo para comer. Dizem que não se deve comer muito lá, tampouco exagerar na bebida. Vegetariano e abstêmio, eu tava me achando. Até que percebi o mar de ladeiras ao redor. As ruas do centro eram escadas, ladeiras e um sobe e desce danado. Resisti até bem. Dormi tranquilo. A manhã seguinte, dia do jogo, já trouxe as primeiras dores de cabeça. Mas eu não estava em El Alto. Dei uma volta para pegar credencial em um hotel que ficava a 1 km do meu. Passinhos de tartaruga. Mas a tartaruga também se cansa. Antes do almoço, mais dor de cabeça. Para compensar, tentei me hidratar bastante. Estava suportável até então. Por volta das 15h, comecei a saga com Julio Gomes, colunista aqui do : vamos ao jogo de Teleférico. Pelo relevo e o trânsito caótico de La Paz e El Alto, é o melhor negócio. Essa recomendação do Zago eu segui. Moleza chegar até El Alto. Uma caminhadinha para achar um táxi e lá fomos nós para as ruas mais próximas ao estádio. Só que a 4.100, qualquer voltinha pode custar muito caro. Ainda estava fazendo piada, embora ofegante, quando chegamos ao estádio Municipal. Os caras batem no peito para dizer que são o mais alto do mundo. E ainda colocam painéis sugestivos do refrigerante de cola local: a Coka Quina. Piada pronta. No estádio, em si, a coisa começou a piorar para o meu lado. Para chegar ao local em que a imprensa foi instalada — com mesas e cadeiras de plástico —, é preciso subir todos os lances da arquibancada. Não parei para contar. Mas ali começou a minha ruína. Fiz o trajeto algumas vezes para tentar ir ao setor onde estava a torcida brasileira — acesso negado — e para tentar ver de perto a movimentação de dirigentes e comissão técnica do Brasil. Antes do apito inicial, eu já estava exausto. O frio, acho eu, piorou tudo. Com o corpo tentando reter calor, tremia demais e a respiração ficou acelerada. O primeiro tempo eu vi mais ou menos. Samuel Lino sofrendo logo depois do primeiro sprint foi um recado para todo mundo. No intervalo, o Brasil estava perdendo, achei que fosse desmaiar. O ar não vinha. Primeiro, me abriguei em uma cabine de rádio dos bolivianos. Olharam para a minha cara e já descobriram logo que eu estava caindo pelas tabelas. Mas aí, Julio Gomes me escoltou até a ambulância. Já tinha passado por ela na chegada. Tinha um garoto deitado na maca, fiquei sentado e rapidamente fui atendido pelos profissionais — que obviamente também estavam aflitos pelo que acontecia em campo. O médico colocou no meu dedo aquele aparelho que mede batimento cardíaco e oxigenação. A oxigenação estava em 58, se é que aquele negócio estava funcionando direito. Os batimentos também estavam na casa dos 118. A máscara de oxigênio salvou minha noite. Fiquei alguns minutos lá, enquanto tentava avisar ao pessoal do Brasil — sem muito sucesso, porque a internet estava horrível — que eu estava nas cordas. Não sei exatamente quanto tempo fiquei ali. Deu uns 20 minutos. Também me deram um remédio para dor de cabeça. Vi o resto do jogo ao lado da ambulância. E quando o juiz apitou, tava tranquilo para registrar a euforia dos torcedores bolivianos, que mandaram para os ares os assentos de isopor do estádio. Zona mista, táxi e van de transporte alternativo para voltar ao hotel. Parecia o fim dos problemas. Mas para voltar ao Brasil, era preciso voltar ao aeroporto. Escrevi matérias, dormi duas horas e partiu casa. A traiçoeira altitude de El Alto ainda me deixou muito enjoado no saguão do aeroporto. Achei que fosse chamar Raul (ou Juca, dependendo de onde você mora) enquanto entregava a mala no check-in. Corri para o banheiro mais próximo - calma, nada nojento aconteceu. Lavei o rosto, respirei um pouco e partiu embarque. Chegar a Santa Cruz de La Sierra trouxe novamente a sensação por vezes imperceptível, mas vital. Apenas respirar.